Onze da noite. Toca
o telefone. É uma amiga, arrasada depois de levar o fora do namorado.
- Ele parecia uma
pedra de gelo, Stella, acabou tudo. Está doendo tanto...
- Ah, querida, não
fica assim: você vai superar esse cara. Vai passar!
Depois de uma hora,
desligamos. Vesti meias de lã. Tomei um copo de chá. Devolvi livros para a
estante. Guardei a roupa passada. Fiquei assim, indo de um canto para outro sem
saber exatamente o que me atormentava. Então, a ficha caiu.
É mentira. A maior
mentira que nos contaram - e que nós, piamente, acreditamos - é essa, a de que
tudo passa. Nada passa. Passa coisa nenhuma.
A gente aprende a
viver com as escaras, aprende a colocar unguentos nos talhos fundos, conhece
outras pessoas que são como bálsamos sobre as nossas feridas, mas elas, as
sanguinolentas, as danadas, as malsãs, elas não passam. Uma mulher é uma chaga
sempre aberta. Um homem é uma ferida sempre exposta. Nada passa.
Sentimentos? Eles
se transformam em outros sentimentos, mas não passam. As pessoas que você amou,
nunca te causarão indiferença: sua única certeza é que você sempre vai sentir
algo quando as encontrar. As pessoas que te menosprezaram, te usaram ou
simplesmente te rejeitaram, continuam, cada qual com sua adaga, perfurando seu
amor-próprio, dia após dia, umas mais, outras menos.
Somos todos, homens
e mulheres, mestres no fingimento, na dissimulação, no recalque, mas a verdade
é que nada passa. Por isso você vê uma mulher histérica ao pegar uma cebola
podre no supermercado, por isso você vê o homem agindo como um primata no
trânsito, por isso seu chefe estoura sem razão, por isso você teve uma crise de
choro durante aquele filme que nem triste era, por isso as pessoas têm
chiliques inexplicáveis: porque nada passa e nós precisamos de válvulas de escape.
Fica sempre um
pouco de tudo, escreveu Drummond, às vezes um botão, às vezes um rato. Se você
me vir tendo um chilique ao pegar uma cebola podre no supermercado, já sabe o
que é: são as cócegas malditas dos meus malditos ratos. Porque tudo muda, mas
nada, nada passa.
(Stella Florence em "Os Indecentes")
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