terça-feira, 29 de abril de 2014

Liberdade.


Solto tudo que me prende, para me prender a tudo que me liberta.

(Renato Oliveira)

Moça-solidão.


Ela sabia que aquele tipo de solidão rimava com aflição, mas ainda vivia num mundo de falso desapego e consequente desilusão. Rodava por aí como se nada fizesse sentido e como se lidasse bem com a própria mentira. Morria de medo da dor, mas, para seu azar, a dor parecia ter uma especial predileção por ela.
Pobre menina, amparada pela piedade de seu próprio martírio. Certas vezes, mantinha-se enlaçada no manto que a fragilizava, outras, saia despreocupada, despida da agonia que a blindava, vagava tentando manter-se intacta ao sofrimento, mas à noite, a saudade embrutecia seu sono e infiltrava grandes doses de tempestades em seus olhos. Molhava o travesseiro e a alma, mas mantinha a postura seca e ligeiramente sóbria ao amanhecer. Puro ato de coragem, ou não, era assim que toda a sua fraqueza se transformava em fortaleza.
Ela não tinha a quem recorrer além de alguns poucos amigos, umas doses de qualquer coisa que lhe tirasse do ar de vez em quando e um velho diário. Velho porque o começara há muito tempo, mas escrevia quase que mensalmente apenas e, nas poucas linhas, despejava os seus anseios, algumas bobagens doces e pesadelos amargos. Era seu consolo escrever até amanhecer, prostrada na amargura, ou numa loucura. A escrita era o seu único passaporte para saltar de dentro de si. Então, escrevia coisas açucaradas, mas seu paladar intuitivo pedia mais.
Rabiscava outros mundos, alguns azedos, outros sem gosto. Ia do amor à dor sem chorar, guardando cada sílaba na boca, pronta para beijar algum sapo, ou algum príncipe que pintasse no seu faz de conta. Sabia que isso podia ser real, mesmo assim decidiu trancar-se na antiga dor de sempre, naquela bendita companhia acolhedora. Eram amigas íntimas e, de vez em quando, uma se embutia na outra, ora moça, ora solidão. Mas a solidão enlouquece e um dia ela se viu diante da oportunidade de despejar seus anseios, provavelmente realizá-los, quando encontrou alguém que ria das mesmas bobagens, alguém que também açucarava, mas sabia acrescentar pimenta e sal na medida, e que também tinha pesadelos amargos, às vezes acordado. Alguém que sabia caminhar em meio à nebulosidade de sua mente, mas também sabia que ela podia ser dissipada com um sopro de carinho. Sim, ela encontrou esse alguém. Pois mesmo trancados e escondidos, acabamos sendo descobertos. Uma escorregada pelo mundo exterior e corremos o risco de virarmos alvos. Assim, sem nem pensar a respeito, ela foi encontrada. Ser encontrada não é o problema. O problema é se deixar encontrar. E a moça-solidão foi: caminhando rumo a um encontro que poderia ser desastroso, mas surpreendentemente, não foi.
Então ela, boquiaberta e braços escancarados, na ponta dos pés, querendo alcançar a lua, voou em direção à colisão: de almas, de corpos, de suores, de existência. Deixou largada no canto do quarto a roupa de solidão. Já não caía bem mesmo. Só agora ela percebia: parecia ter sido feita por um costureiro muito ruim, sem nenhum senso de estilo e que ainda por cima não gostava dela. Não, não. O tecido pinicava. Chega de se vestir de NÃO.


(Ju Dacoregio e Ju Fuzetto)

Espera para começar.


(...) Amores virão depois das paixões,
palavras certas sempre virão depois das erradas,
a resposta certa virá quando o ato errado foi cometido,
 televisões novas estragam e garantias são perda de tempo,
o telefonema mais esperado irá chegar
enquanto estamos tomando banho
 com o rádio no último volume,
as cartas não chegam, nem os e-mails,
nem a esperança, as taças caras quebram como
os copos de extrato de tomate,
 analfabetos ganham o país e
poemas de Alice Ruiz passam sem aclamação.
 Começar pode ser aos 17. Pode ser aos 30.
Pode ser aos 85.
Começar pode ser ao som de Marvin Gaye
ou no apaixonar de Chico.
Debaixo de uma mangueira,
debaixo de uma chuva torrencial.
Começar em Porto Alegre,
pousar em Curitiba, recomeçar na Avenida Paulista,
dormir no braços de Cristo e
"passar uma tarde em Itapuã, ao sol que arde em Itapuã,
 ouvindo o mar de Itapuã...".
 Começar é de repente perceber que já
se está na metade do caminho.
Começar é dar mais valor ao tempo
que temos e descobrir como é uma tortura
o tempo que não temos.
Começar é dar possibilidade de que
alguma coisa aconteça aqui ou em Amsterdã.
O beijo é o começo do amor.
O amor é o começo do plano.
O plano é o começo do caos.
O caos é o começo da família.
A família é o começo dos herdeiros.
Os herdeiros são o começo do futuro.
E o futuro já não é mais
tão perto e nem tão para a gente.
O futuro, aparentemente é o fim que nos espera.
Espera para começar.

 (Cáh Morandi)


Lucidez brilhante.

Sentava-se na varanda diariamente, num ritual marcado, para conversar com seus sonhos. Ao longe as pessoas podiam vê-lo dialogando sozinho e o pensavam louco. Certeiramente, claro. No entanto, sentia-se feliz por saber que dentro de sua loucura existia um manto de lucidez brilhante. 
Tinha uma beleza extraordinária: era tão deslumbrante que se via deformado, como se o belo em demasia também fosse a própria feiura. E talvez fosse.
Falando consigo mesmo, jorrava de sua boca toda a ternura que era incapaz de lançar ao mundo. Ficou conhecido como o rapaz dos fantasmas. Durante muitos anos foi visto na mesma varanda, repetindo frases inteligíveis e cheias de amor. 

Até que tudo terminou disfarçado de tristeza no silêncio que o vestiu. 

(Tiago Fabris Rendelli)

Todos os sonhos.



Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

(Fernando Pessoa)

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Dentro de nós.


É necessário abrir os olhos e perceber que as coisas boas estão dentro de nós, onde os sentimentos não precisam de motivos nem os desejos de razão. O importante é aproveitar o momento e aprender sua duração, pois a vida está nos olhos de quem saber ver.

(Gabriel García Marquez)

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Sobre ela.



É lenta e quase não fala. Tem olhos hipnóticos, quase diabólicos. E a gente sente que ela não espera mais nada de nada nem de ninguém, que está absolutamente sozinha e numa altura tal que ninguém jamais conseguiria alcançá-la. Muita gente deve achá-la antipaticíssima, mas eu achei linda, profunda, estranha, perigosa. É impossível sentir-se à vontade perto dela, não porque sua presença seja desagradável, mas porque a gente pressente que ela está sempre sabendo exatamente o que se passa ao seu redor. Talvez eu esteja fantasiando, sei lá. Mas a impressão foi fortíssima, nunca ninguém tinha me perturbado tanto.

(Caio Fernando Abreu)

Eu gostei de você.



 Vocês se amaram? 
- Ela me amou. Foi a única criatura que... – Fez um gesto. – Enfim não tem importância. 
Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o: 
- Eu gostei de você, Ricardo. 
- E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença? 

(Lygia Fagundes Telles)

Lembra, moço.


Lembra, moço, que meu sorrir é quem fala, porque eu não sei lidar com palavras, não.


(Jaya Magalhães)

Rapte-me.


Rapte-me, leve-me para algum lugar fora de mim. Pode ser a lua, o tártaro, cidades invisíveis, qualquer espaço depois do mapa. É preciso ter tanto e sempre para sonhar além dessas águas plúmbeas, para não se afogar diariamente no breu que meus olhos cavam na luz. Pois se repito infinitamente que tenho amor, pois se me comovo com crianças que tremem, pois se não tenho fome de nada e me flagelos pelas fomes alheias, o que falta para dar a exata medida de minha existência?

 (Tiago Fabris Rendelli)


A vida .



A vida é sempre a mesma para todos: rede de ilusões e desenganos. 
O quadro é único, a moldura é que é diferente.

(Florbela Espanca)

Em crise.

É preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante.

(Friedrich Nietzsche)


Quando estamos em crise por algo específico ou por tudo, uma preciosidade acontece: Saímos do lugar. Damos um passo adiante. Buscamos por outras paisagens, outros personagens, novas histórias. Por mais dolorosa que seja uma crise, ela é um aprendizado. Ele nos diz que o que estamos fazendo não serve mais para que obtenhamos o resultado almejado. Ela nos mostra que aquela relação teve o seu tempo esgotado. Que aquele emprego não nos faz mais feliz. Que gostaríamos de começar outra atividade, nos especializar em outra coisa. Enquanto estamos confortáveis, não nos movemos porque tudo está do jeito que queríamos. Quando esta fase passa é hora de subir outro degrau, abrir um pouco mais a mente e reavaliar o que tem ocupado o nosso coração. Aproveite as crises para crescer, para ousar, para criar um movimento em seu benefício. Reclamar do processo não o resolve. Aceite e ponha ação em suas palavras. E, se puder, agradeça. Há merecimento nas graças obtidas pela GRATIDÃO.
(Marla de Queiroz)

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Não amar demais.


(...) farei o possível para não amar demais as pessoas, sobretudo por causa das pessoas. Às vezes o amor que se dá pesa, quase como uma responsabilidade na pessoa que o recebe. Eu tenho essa tendência geral para exagerar, e resolvi tentar não exigir dos outros senão o mínimo. É uma forma de paz.

(Clarice Lispector)

Sejamos.



Que estejamos presentes em memórias alheias. Que alguém já distante lembre do nosso sorriso e se sinta acolhido.
Que o nosso bem faça bem ao outro. Que sejamos a saudade batendo no peito de uma velha amizade.
Que sejamos o amor que alguém nunca esqueceu. Que sejamos um alguém que sorriu na rua e o desconhecido encantou-se.
Que sejamos, hoje e sempre, uma coisa boa que mora dentro de cada um que passou por nós.

(Elizabeth Gilbert)

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Além.


Sinta minhas asas, minhas raízes famintas de uma água sempre negada e saberá de pronto que sou o além das palavras, o além dos muros, descaso e devastação. Não desejo nada menos do que meu quarteirão coberto de poesia. 

(Tiago Fabris Rendelli)

Divina eternidade.

Eu não consigo ver você e você conhece tudo. Mesmo assim, minha vida não será inútil. Porque sei que nos encontraremos de novo. Em alguma divina eternidade.


(Oscar Wilde)

Minha alma.


Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros.

(Clarice Lispector)

Onde tu estás.


Agora mesmo, no exato momento em que o ponteiro grande do relógio branco com a Santa Ceia parou ao lado do número 3 e o médio no 12 eu sei onde tu estás. Tomando café e se deliciando com aquele chocolatinho que vem de brinde. Usando anéis só pra ficar brincando com eles enquanto ouve alguém falar sobre o último filme que viu. Sorrindo enquanto pede pra te acenderem um cigarro. Reclamando da falta de sol. Usando sapatos baixos. Dirigindo mal, rápido e com vidro arriado. Dando conselhos. Comendo ceasar salad só porque gosta do nome. Camisa branca e cabelo preso. Rezando pelo fim das guerras. Achando que não tem mais idade para usar fivelinhas de cabelo e mesmo assim usando. Ficando magoada. Carregando um livro puído. Estudando fotografia. Lembrando que afinal, Deus não tem culpa de nada. Esquecendo de amar. Três regimes abandonados. Dois pensamentos provocando dor de cabeça e uma sensação de que não dá mais tempo. 

(Cris Lisbôa)