Eu ainda me incomodo com a loucura de
quem não sabe receber afeto.
(Ita Portugal)
Por que essa ingratidão memorativa? Por que essa desigualdade
evocativa? Estou por concluir que a memória abomina a felicidade. Não cuidamos
dos positivos das lembranças, apenas colecionamos os negativos. Não nos
esforçamos para guardar os bons momentos porque temos a ideia – equivocada – de
que são obrigatórios. Há o entendimento de que normalidade é acumular glória na
vida enquanto a dor é um acidente de percurso. Há a convicção de que a alegria
é uma condição natural enquanto a cara fechada é uma exceção (não seria o
contrário?). Predomina em nós a compreensão ingênua da felicidade como
facilidade e da tristeza como dificuldade. Ser feliz seria simples e ser triste
consistiria numa tremenda injustiça. Uma noção do mundo em linha reta, de amor
em abundância, provocando o desperdício constante e perigoso. Não preservamos
as delicadezas, assim como não economizamos água, já que ela verte com
ligeireza pela torneira da residência. Não poupamos as cenas comoventes, assim
como não economizamos luz, já que ela depende de um clique para clarear as
paredes. Não embrulhamos a ternura, esnobamos. Parece que é um dever recebê-la,
que nossa companhia precisa nos oferecer sempre o cotidiano mais precioso.
Devoramos um bolinho de chuva pensando no próximo. Beijamos a boca de nossa
mulher cobiçando o segundo, o terceiro e o quarto beijo. O que é ruim é solene.
O que é bom é descartável. A morte se torna mais inesquecível do que o
nascimento. O atrito surge mais consolidado do que o primeiro encontro. A
ruptura se destaca diante dos acordes iniciais da amizade. Temos amnésia da
leveza, pois deduzimos que virá mais e mais no dia seguinte. Não criamos álbuns
de nossas gargalhadas, mas recortamos as cenas rancorosas e amargas como se
fossem definitivas e esclarecedoras. Somos algozes da felicidade e, ao mesmo
tempo, vítimas da infelicidade.
(Fabrício Carpinejar in Cadê minhas lembranças felizes)
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