Uma
carta para Catarina, que descobriu que até as crianças quebram
Era
uma festa. Comemorávamos a vinda de um bebê que ainda morava na barriga da mãe.
Eu havia acabado de segurá-la para que ela passasse a pequena mão na água da
fonte do jardim. Ela tentava colocar o dedo gorducho no buraco para que a água
se espalhasse, como tinha visto uma criança mais velha fazer. Parecia encantada
com a possibilidade de controlar a água. Tem 1 ano e oito meses, cabelos
cacheados que lhe dão uma aparência de anjo barroco e uns olhos arregalados.
Com olheiras, Catarina é um bebê com olheiras, embora durma bem e muito. De
repente, ela enrijeceu o corpo e deu um grito: “A menina…. A menina…. Quebrou”.
Era
um grito de horror. O primeiro que eu ouvia dela. Animação, manha, dor física,
tudo isso eu já tinha ouvido de sua boca bonita. Aquele era um grito diferente.
Não parecia um tom que se pudesse esperar de alguém que ainda precisava se
esforçar para falar frases completas. Catarina estava aterrorizada. “A menina…
A menina…” Ela continuava repetindo. Olhei para os lados e demorei um pouco a enxergar
o que ela tinha visto em meio à tanta gente. Uma garota, de uns 10, 12 anos,
talvez, com uma perna engessada. “Quebrou…” Catarina repetia. “A menina…
quebrou.”
Ela
não olhava para mim, como costuma fazer quando espera que eu esclareça alguma
novidade do mundo. Era mais uma denúncia. Pelo resto da festa, ela gritou a
mesma frase, no mesmo tom aterrorizado, sempre que a menina quebrada passava
por perto. Nos aproximamos da garota, para que Catarina pudesse ver que ela
parecia bem, e que os amigos se divertiam escrevendo e desenhando coisas no
gesso, mas nada parecia diminuir o seu horror. Os adultos próximos tentaram
explicar a ela que era algo passageiro. Mas ela não acreditava. Naquele sábado
de janeiro Catarina descobriu que as pessoas quebravam.
Eu
a peguei, olhei bem para ela, olho no olho, e tentei usar minha suposta
credibilidade de madrinha: “A menina caiu, a perna quebrou, agora a perna está
colando, e depois ela vai voltar a ser como antes”. Catarina me olhou com os
olhos escancarados, e eu tive a certeza de que ela não acreditava. Ficamos nos
encarando, em silêncio, e ela deve ter visto um pouco de vergonha no assoalho
dos meus olhos. Era a primeira vez que eu mentia pra ela. E dali em diante, ela
talvez intuísse, as mentiras não cessariam. Naquela noite, depois da festa, fui
dormir envergonhada.
O
que eu poderia dizer a você, Catarina? A verdade? A verdade você já sabia, você
tinha acabado de descobrir. As pessoas quebram. Até as meninas quebram. E, se
as meninas quebram, você também pode quebrar. E vai, Catarina. Vai quebrar.
Talvez não a perna, mas outras partes de você. Membros invisíveis podem
fraturar em tantos pedaços quanto uma perna ou um braço. E doer muito mais. E
doem mais quando são outros que quebram você, às vezes pelas suas costas, em
outras fazendo um afago, em geral contando mentiras ou inventando verdades.
Gente cheia de medo, Catarina, que tem tanto pavor de quebrar, que quebram
outros para manter a ilusão de que são indestrutíveis e podem controlar o curso
da vida. E dão nomes mais palatáveis para a inveja e para o ódio que os queima.
Mas à noite, Catarina, à noite, eles sabem.
E,
Catarina, você tem toda a razão de duvidar. Depois de quebrar, nunca mais
voltamos a ser como antes. Haverá sempre uma marca que será tão você quanto o
tanto de você que ainda não quebrou. Viver, Catarina, é rearranjar nossos cacos
e dar sentido aos nossos pedaços, os novos e os velhos, já que não existe a
possibilidade de colar o que foi quebrado e continuar como era antes. E isso é
mais difícil do que aprender a andar e a falar. Isso é mais difícil do que
qualquer uma das grandes aventuras contadas em livros e filmes. Isso é mais
difícil do que qualquer outra coisa que você fará.
Existe
gente, Catarina, que não consegue dar sentido, ou acha que os farelos de
sentido que consegue escavar das pedras são insuficientes para justificar uma
vida humana, e quebra. Quebra por inteiro. Estes você precisa respeitar, porque
sofrem de delicadeza. E existe gente, Catarina, que só é capaz de dar um sentido
bem pequenino, um sentido de papel, que pode ser derrubado mesmo com uma brisa.
E essa brisa, Catarina, não pode ser soprada pela sua boca. Ser forte,
Catarina, não é quebrar os outros, mas saber-se quebrado. É ser capaz de cuidar
de seus barcos de papel – e também dos barcos dos outros – não como uma criança
que os imagina poderosos, de aço. Mas sabendo que são de papel e que podem
afundar de repente.
Não,
acho que eu não poderia ter dito isso a você, Catarina. Não naquela noite, não
agora. Ao lhe assegurar, cheia de autoridade de adulto, que tudo estava bem com
a menina quebrada, com qualquer e com todas as meninas quebradas, o que eu dei
a você foi um vislumbre da minha abissal fragilidade. Esta, Catarina, é uma
verdade entre as tantas mentiras que lhe contei, ao tentar fazer com que
acreditasse que eu seria capaz de proteger você. Vai chegar um momento, se é
que já não houve, em que você vai olhar para todos nós, seus pais, seus
“dindos”, seus avós e tios, e vai perceber que nós todos vivemos em cacos. E eu
espero que você possa nos amar mais por isso.
Essa
conversa, Catarina, está apenas adiada. Talvez, daqui a alguns anos, você
precise me perguntar como se faz para viver quebrada. Ou por que vale a pena
viver, mesmo se sabendo quebrada. E eu vou lhe contar uma história. Ela
aconteceu alguns dias depois daquela festa em que você descobriu que até as
meninas quebram. Nós estávamos na fila do caixa do supermercado perto de casa,
com uma cesta cheia de compras, e havia um homem atrás de nós. Era um homem vestido
com roupas velhas e sujas, parte delas quase farrapos. E ele cheirava mal.
Poderia ser alguém que dorme na rua, ou alguém que se perdeu na rua por uns
tempos. Ficamos com medo de que o segurança do supermercado tentasse tirá-lo
dali, ou que a caixa o tratasse com rispidez, ou que as outras pessoas na fila
começassem a demonstrar seu desconforto, como sabemos que acontece e que jamais
poderia acontecer. Enquanto pensávamos nisso, ele nos abordou. E pediu, com
toda a educação, mas com os olhos dolorosamente baixos: “Por favor, será que eu
poderia passar na frente, porque tenho pouca coisa?”.
Quando
lhe demos passagem, vimos que o homem não tinha pouca coisa. Ele só tinha uma.
Sabe o que era, Catarina?
Um
sabonete. Era o que havia entre as mãos de unhas compridas e sujas, junto com
algumas moedas e notas amassadas, como em geral são as notas que valem pouco.
Aquele homem, que parecia ter perdido quase tudo, aquele homem talvez ainda
mais quebrado que a maioria, porque tinha perdido também a possibilidade de
esconder suas fraturas, o que ele fez? Quando conseguiu juntar uns trocados, o
que ele escolheu comprar? Um sabonete.
Catarina,
talvez um dia, daqui a alguns anos, você volte a me olhar nos olhos e a dizer:
“A menina… quebrou”. Ou: “Eu… quebrei”. E talvez você me pergunte como
continuar ou por que continuar, mesmo quebrada. E eu vou poder lhe dizer,
Catarina, pelo menos uma verdade: “Por causa do sabonete”.
(Eliane
Brum)
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