Se isso não é
amor, me diga o que há de ser, amor.
(Bibiana
Benites)
Podia ser
só amizade, paixão, carinho, admiração, respeito, ternura, tesão. Com tantos
sentimentos arrumados cuidadosamente na prateleira de cima, tinha de ser justo
amor, meudeus? Porque quando fecho os olhos, é você quem vejo; aos lados, em
cima, embaixo, por fora e por dentro de mim. Dilacerando felicidades de
mentira, desconstruindo o que era em parte, abrindo todas as janelas para um
mundo deserto de nós dois. É você quem sorri, morde o lábio, fala grosso, abre
potes, inventa histórias, me tira do sério, faz ares de palhaço, pinta
segredos, ilumina o corredor onde todos os túneis são começos de qualquer coisa
de feliz, de leve, de azul, de puro e de meu. Não, não me fale em medo,
paciência, tempo que vai chegar. Não volte dois espaços, não negue, apareça.
Sou vírgulas, você é lacunas. Claro, o dia de amanhã cuidará do dia de amanhã e
tudo chegará no tempo exato. Mas e o dia de hoje? É agora que quero dividir
maçãs, achar o fim do arco-íris, pisar sobre estrelas e acordar serena. É para
já que preciso contar as descobertas, alisar seu peito, preparar uma massa e
cantar as velhas canções. Não posso esperar. Tenho a mesa posta, toalhas
brancas, ombros moles e uma alma que só saber viver presentes. Sem esperas, sem
amarras, sem receios, sem cobertas, sem ideias, sem voz, sem sentido. Com uma
única certeza. É preciso que você venha. É preciso que você venha nesse exato
instante. Agora que não há conceitos e os nomes ainda são desprezíveis. Venha e
escreva uma longa e cafona novela mexicana, com laquê nas expressões. Rime
prazer com agonia, grafite paredes com os clichês dos amantes, acorde dentro de
mim, lamba pernas com os seus cabelos lisos e reais. É tudo um vazio cheio de
portas, com caminhos confusos e simples que levam ao único lugar possível a
quem ousa chamar de amor o que não deveria ter nome: o desconhecido. Seja
forte. Porque é preciso coragem para se arriscar num futuro incerto, cuja
estrada embriaga até mesmo quem tem passos firmes e saber fazer o quatro.
Esqueça os on-the-rocks. Seja cowboy, macho, gente, animal, mistério, doçura,
pegação. Abandone os antes. Meu nome é já e nossos pés paralelos se tocam no
finito. Chame do que quiser. Mas venha. Preciso dizer-lhe o que você talvez
ainda não saiba: existem lobisomens que comem flores. Você sabia que existem
lobisomens que comem flores? Você sabia disso, meu bem? Daqui quase posso
vê-lo, no meio de um grande corredor colorido. Buganvílias, rosas, cravos,
azaléias, orquídeas, gérberas, gerânios. Não sei suas preferidas, mas percebo
uma sutileza no ar. Médico e monstro, dor e riso, o impossível e o real.
Opostos quase palpáveis, fechando metades, descobrindo o mundo, abrindo
clareiras no matagal das emoções. Você sabia que o impossível mora no nosso
quintal? Você sabia que os galos cantam, todos os dias, para que a coragem
desperte e Deus renove sua misericórida sobre todos os que pecam. Qual é seu
maior pecado, meubem? Hoje sou luxúria. Espero mãos pesadas, ópio na veia, sol
de giz riscado no chão. Quero dividir meus erros, arranhar minha loucura,
arrastar cabelos aos seus pés. Não cale. Entregue, apele. Posso descobrir
mazelas escondidas e transformar seu corpo em juízo final. Marque o x e verá
uma fila inesgotável de possibilidades adormecidas estendidas no seu varal.
Seja. Porque estamos tão perto e tão longe e claros e cheios e inertes e
ofegantes. Sou o chá, o veneno, a cura, a espera, a certeza, o presente, a
solução. Reconheço enganos. E o meu medo é do seu medo de ter medo. Porque não
quero amizade, paixão, carinho, admiração, respeito, ternura, tesão. Quero o
que é e não tem muro. Escolhi o amor da prateleira e aprendi a só entender o
sim. Se o seu modo é não, vá embora. Não olhe para trás. Renego estátuas de sal
e abomino divisões. Se é para pular, que seja já. Porque hoje é hoje; e amanhã,
amanhã ninguém sabe.
(Caio
Fernando Abreu)
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