...Há formas subjetivas de amar, não refletidas em gestos ou
sacrifícios. São formas egoísticas, talvez. Nem por isso menos válidas.
Aquele silêncio, por exemplo, em casa, com a mulher (ou com o
marido), com a mãe ou com o pai. Aquele silêncio machuca quem nos espera
alegres, faladores, contando as batalhas e peripécias da vida. E, no entanto,
cheios de coisas para contar, nada sai. Ou sai pouco. “Sins”, “Nãos”, frases
sintéticas, e um ar irritado, pressa para acabar o assunto. Parece desamor. E
de fato é egoístico. Mas é preciso aceitar que há ou pode haver uma forma
especial de amor naquele silêncio, naquela irritação. No exercer- exatamente
ali - aquele tédio e aquele cansaço.
Ouso uma tradução para aquele silencio: “Minha mulher, ou meu
marido, ou minha amante, ou minha amada, ou minha namorada, ou minha mãe ou meu
pai ou avô, tio, avó, sogra etc.: eu a/o amo tanto, que a você eu posso
entregar o meu cansaço, o meu silêncio, a minha necessidade de ficar um pouco
calado, nada contar, não falar, não ser solicitado. Eu estou aqui a seu lado
como quem pede socorro em silêncio, na suposição e esperança de que aqui
ninguém exija que eu fale, conte ou me defenda, que eu seja brilhante, que eu
seja bom etc.. Eu vim aqui homenagear você e o seu amor com o meu silêncio, o
meu cansaço e o meu egoísmo, porque você saberá entendê-los.
Esta é a tradução que sugiro para tanto vazio que parece
desamor. Somos capazes de fazê-la a cada situação real de silêncio do outro que
nos soa a desamor ou rejeição?
Pelo menos cinqüenta por cento dos problemas e sentimentos de
rejeição derivam da má tradução de certas atitudes que parecem indiferença ou
desamor. É por dar ao outro a certeza de que nos sabemos amados e queridos que
nos sentimos autorizados a ser chatos, cansados, entediados, silenciosos e
egoístas com ele para que parceiro/a ou parente ou amigo tenha a certeza do que
nós sentimos por ele e de que o amamos. Com quem nos ama sentimo-nos à vontade
para exercer nossos impulsos menores, desprezíveis ou primários.
Injusto? Claro que é! Justamente quem nos ama, por suas
carências e necessidades, talvez seja quem mais precise do nosso gesto, afeto,
ou palavra. Ao reagirmos assim, estamos esquecendo das necessidades daquele que
nos ama. E se ele é do mesmo estilo (mais sentimento do que gesto) vai entender.
Mas se é do estilo inverso (gesto e atitudes que concretizem os sentimentos)
acabará em cobrança, por que ele quer receber da mesma forma pela qual doa. E
não recebe.
Amor e amizade são relações feitas e alimentadas de injustiças
superadas. É impossível a permanente coincidência de necessidades
complementares.
Uma das percepções mais difíceis é a da dimensão do amor do
outro por nós, numa medida em que nem ele próprio percebe. É preciso aprender a
se relacionar com essa dimensão oculta, para não ficarmos infelizes com as
respostas que não vierem, com os silêncios que substituírem conversas, com as
ausências e egoísmos que nos rejeitarem.
O ser humano (estranhamente) comporta-se de forma pior com quem
gosta, porque quem gosta acaba compreendendo. É preciso desenvolver o senso de
percepção do sentimento por nós, não manifestado pelo outro. É mister buscar ou
captar esse sentimento no desvão onde vive escondido ou no silêncio no qual se
disfarce.
Há pontos do sentimento por nós ou do nosso sentimento pelo
outro que não precisam ficar claros para existir. Eles existem a despeito. Quem
sente o silêncio, o tédio, o cansaço e o desabafo do ente querido precisa
começar a descobrir o que se agita, esconde ou emociona dentro da atitude que o
fere. Ou se sabe, tem grande dificuldade de transformar em gesto (o gesto que
faz tanta falta a quem dele necessita) tudo o que sente.
É preciso enorme compaixão e incomensurável carinho por todos
que nos doam o seu amor através da esperança de que sejamos suficientemente
fortes para receber e aceitar o seu silêncio, o seu cansaço, o seu tédio e a
sua depressão. O enigma do amor inibido de manifestar-se não é simulacro de
desamor, tédio ou antipatia, quando é, apenas, atrofia da expressão amorosa,
limitação inexplicável mas insidiosa de quem ama sem saber amar.
(Artur da Távola in O amor silencioso do livro: Do amor - o
ensaio do enigma)
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