Por que essa ingratidão
memorativa? Por que essa desigualdade evocativa? Estou por concluir que a
memória abomina a felicidade. Não cuidamos dos positivos das lembranças, apenas
colecionamos os negativos. Não nos esforçamos para guardar os bons momentos
porque temos a ideia – equivocada – de que são obrigatórios. Há o entendimento
de que normalidade é acumular glória na vida enquanto a dor é um acidente de
percurso. Há a convicção de que a alegria é uma condição natural enquanto a
cara fechada é uma exceção (não seria o contrário?). Predomina em nós a
compreensão ingênua da felicidade como facilidade e da tristeza como
dificuldade. Ser feliz seria simples e ser triste consistiria numa tremenda
injustiça. Uma noção do mundo em linha reta, de amor em abundância, provocando
o desperdício constante e perigoso. Não preservamos as delicadezas, assim como
não economizamos água, já que ela verte com ligeireza pela torneira da
residência. Não poupamos as cenas comoventes, assim como não economizamos luz,
já que ela depende de um clique para clarear as paredes. Não embrulhamos a
ternura, esnobamos. Parece que é um dever recebê-la, que nossa companhia
precisa nos oferecer sempre o cotidiano mais precioso. Devoramos um bolinho de
chuva pensando no próximo. Beijamos a boca de nossa mulher cobiçando o segundo,
o terceiro e o quarto beijo. O que é ruim é solene. O que é bom é descartável. A
morte se torna mais inesquecível do que o nascimento. O atrito surge mais
consolidado do que o primeiro encontro. A ruptura se destaca diante dos acordes
iniciais da amizade. Temos amnésia da leveza, pois deduzimos que virá mais e
mais no dia seguinte. Não criamos álbuns de nossas gargalhadas, mas recortamos
as cenas rancorosas e amargas como se fossem definitivas e esclarecedoras. Somos
algozes da felicidade e, ao mesmo tempo, vítimas da infelicidade.
(Fabrício Carpinejar
in Cadê minhas lembranças felizes)
Nenhum comentário:
Postar um comentário